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O artista plástico de sorrisos

    Alonso, desde 1997, viaja ao menos uma vez por ano – com o bisturi na bagagem – para esculpir voluntariamente marcas sorridentes na população mais carente do País. São portadores de uma malformação genética na boca. Neles, os lábios não são totalmente formados e a cavidade bucal fica aberta o tempo todo, mesmo com a boca fechada.

    Uma cirurgia plástica, facilmente, pode corrigir a anomalia quando os pacientes ainda são bebês. Mas a falta de centros especializados e cirurgiões capacitados para tal procedimento fazem com que muitas pessoas convivam com o lábio eporino até a vida adulta. Era o caso do jovem que só desejava dar o primeiro beijo. Era a situação daquela senhora que, após mais de quatro décadas com lábio leporino, viu a filha caçula nascer com o mesmo problema. Ela só queria que a
    menina não passasse tantos anos escondendo sorrisos como precisou fazer.

     

    São dois exemplos de pacientes, ambos do interior do Ceará, que após serem atendidos pelo cirurgião plástico Nivaldo Alonso, pagaram a consulta com risos. Risadas plenas, escondidas por vergonha até aquele contato com o médico. Isso porque, toda vez que queriam surgir no rosto, estampavam uma condição chamada popularmente de lábio leporino.

    Nivaldo Alonso escolheu a carreira médica “quase que por acaso” aos 18 anos, em 1972. “Não havia médicos na família. Não tinha um herói imaginário que era doutor. Tinha vontade de ser médico e não engenheiro ou advogado, as três profissões possíveis na minha época.”

    O jovem morava em Santos, no litoral paulista, e foi aprovado na Escola Paulista de Medicina (Unifesp), na capital de São Paulo. Fez as malas, procurou uma república de estudantes para poder terminar os estudos. Mas com o dinheiro curto do pai taxista e da mãe dona de casa, logo no primeiro ano de faculdade precisou trabalhar para pagar o aluguel.

    De manhã o aspirante a médico estudava. Durante as madrugadas, das 19h até as 7h, era escriturário do pronto-socorro do hospital universitário e recebia ajuda de custo para a função. Os casos complexos que chegavam em intervalos de cinco minutos direcionavam Alonso a escolher a carreira de cirurgião, que solucionaria rápido as deformidades de acidentados de carro, vítimas da violência domésticas ou de rua. Fez residência e teve a oportunidade de fazer especialização
    em cirurgias na área da cabeça e pescoço na França.

    Voltou um ano depois, já formado, decidido a utilizar a cirurgia plástica não para fazer lipoaspirações ou implantes de silicone, duas modalidades que respeita muito, mas nunca o fisgaram a ponto de virarem práticas cotidianas.

    “Gostava mesmo de operar os rostos, as fissuras labiais e palatinas”, afirma. Já em 1997, Alonso era chefe da residência de cirurgia craniofacial no Hospital das Clínicas de São Paulo e foi convidado para participar da Operação Sorriso no Brasil, uma organização não-governamental que já viajava o mundo levando as correções para pacientes com lábio leporino.

    O médico cirurgião plástico aceitou participar das missões 25 anos após ter escolhido a medicina como ofício. “No começo, fiz isso porque acreditava ser uma oportunidade única de viajar pelo território brasileiro e conhecer outros lugares fora de São Paulo”, relembra. Mas o cirurgião avalia que só quando começou a receber como recompensas os sorrisos de ex-lábios leporinos entendeu o que era, de fato, ser médico.

    Presenças e ausências

    Para participar das missões da Operação Brasil, Nivaldo Alonso organiza a agenda de seu consultório particular, os horários da universidade onde leciona e também os compromissos do hospital público em que trabalha.

    “São entre sete e dez dias que fico fora e não tenho ganho financeiro algum, só gasto.”

    De fato, ser um voluntário do projeto permitiu ao cirurgião conhecer os locais mais distantes no País, comunidades em que água potável é privilégio de poucos e até outros países como Quênia, Filipinas e Marrocos.

    “Mas não importa o endereço. Em qualquer idioma ou sotaque, sempre há uma fala de que eles esperam mudanças na vida, uma reviravolta em 180 graus. Eles arrumam mecanismos de sobrevivência com o lábio leporino, pois sabem que para alguns causam repulsa, rejeição. Quando chegam até nós, querem ser vistos olhos nos olhos.”

    A presença da Operação Sorriso, conta Nivaldo Alonso, é transformadora, tanto para quem é atendido quanto para quem atende. A chegada da equipe de cirurgiões voluntários precisa fazer triagem dos casos que se aglomeram em filas de espera, formada por pessoas com dificuldade na fala, na mastigação, no simples ato de sorrir. As cirurgias podem ter duração entre 45 minutos e duas horas e até hoje, em média, foram 3.600 sorrisos reconstruídos só em território
    brasileiro.

    A ausência da Operação Sorriso também é sentida. Nem sempre é possível operar todos os pacientes que chegam querendo cuidados. A falta de pessoas para dar continuidade ao tratamento também acaba os privando de fonoaudiologia e reparos essenciais para o resultado completo.

    “Por isso, também é nossa missão popularizar a cirurgia plástica de fissura labial, treinar jovens médicos e pressionar o poder público para que leve o acesso universal a todos os brasileiros.”

    As malas de Nivaldo Alonso estão arrumadas, rumo ao Rio de Janeiro, para mais uma missão. Provavelmente, na semana em que será voluntário, serão 25 cirurgias realizadas. E depois de partir, o médico vai levar mais histórias para contar. E lá na comunidade atendida vai deixar, quem sabe, uma família orgulhosa de seus sorrisos e um jovem com plena capacidade de beijar sua namorada.

    Fonte: Midia News